Forever Mine (Paul Schrader, 1999)


Poucos filmes suscitam tantas variações e releituras quanto Vertigo (Psicose e Os Pássaros chegam perto, em se tratando de Hitchcock). Há sempre algo de romântico em um thriller no qual um homem apaixonado por uma imagem que já não é (e alguma vez foi?) sua investe suas forças na tentativa de recuperá-la ou retê-la. Estudioso da obra de Hitchcock e de tantos outros cineastas (o seu livro de 72 sobre Bresson, Ozu e Dreyer é um clássico da crítica cinematográfica norte-americana), Paul Schrader desde cedo passou da teoria à prática com um roteiro que nos anos setenta reimaginava Vertigo em Trágica Obsessão (Obsession, no título original), mas este era um filme de Brian De Palma e não de Schareder, que mais de vinte anos depois aproveitaria algumas semelhanças no argumento para dirigir Forever Mine (lembrando que um outro mais celebrado trabalho como roteirista de Schrader no seu começo de carreira, Táxi Driver, também teria por suas mãos uma releitura mais intimista anos depois com O Dono da Noite, com Willem Dafoe). As quatro décadas que separam o filme de Hitchcock de Forever Mine atestam o quanto este é bem vulgar e vagabundo em se tratando de seus excessos e personagens, mas Schrader é um cineasta que exibe um temperamento clássico, e um grande cuidado nos enquadramentos, desde o plano de abertura com a fachada de um hotel de verão em Miami (e este é um filme que precisa ser assistido no formato de tela correto, que respeita as opções do diretor pelo scope, e não em eventuais exibições na TV que mutilam suas imagens). O seu protagonista masculino é tão obcecado quanto o dos dois filmes predecessores, e se estes já eram figuras emocionalmente destruídas pela tragédia, Schrader trata de estender essa circunstância até a condição física do sujeito, que vaga como um zumbi e levemente desfigurado, um corpo morto mas habitado por fantasmas, como quem retorna de outro mundo em busca de seu anjo ou demônio louro que o leva a auto-destruição, e mais não se pode dizer sobre sua trama sem entregar as suas surpresas. Schrader erige um suspense para dar forma a um romance, e constrói um filme vivo, quente, colorido, talvez não todo bem-sucedido por inteiro, mas como thriller romântico e filme que acredita no potencial de suas imagens e excessos Forever Mine em seus melhores momentos só encontra rival no cinema contemporâneo em obras de Brian De Palma como O Pagamento Final e Femme Fatale.

Essential Killing (Jerzy Skolimowski, 2010)


Estou pra ver no cinema contemporâneo uma outra experiência predominantemente física quanto o recente filme de Skolimowski, que extrai sua densidade a partir de paisagens, corpos, sons e cores em contante ação e movimento. Fãs de Vincente Gallo vão creditar muito das qualidades do filme à sua impressionante presença em cena (de fato, é a sua melhor performance no cinema) – mas o grande responsável pela beleza que é o filme é o seu diretor, aqui mais bem-sucedido do que o seu anterior e já muito bom As Quatro Noites de Anna, que marcou o seu retorno após dezessete anos afastado das telas. o cineasta polonês recupera um clima de thriller de ação e cinema fisico por uma natureza selvagem e um exuberante cenário montanhoso e enevoado de Figures in a Landscape, de Joseph Losey, que por vezes surge na lembrança enquanto assistimos o do skolimowski. Mas Essential Killing faria mesmo uma senhora sessão dupla é com The Hurt Locker, como os grandes filmes em torno dos conflitos recentes na região do oriente médio (no caso deste, a internvenção norte-americana no Afeganistão): num, a guerra tratada quase como um vício; no outro, reduzida à essência da luta pela sobrevivência.

Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971)

Revisão de Laranja Mecânica depois de algum tempo sem assisti-lo, agora em Blu-Ray. É sempre interessante retornar ao filme, ainda mais depois de adulto, permitindo que se confirme ou desminta velhas perspectivas, além de que podem acrescentar outras mais, ainda que se trate de uma obra já devidamente (e um tanto exagerado) celebrada. Seus defeitos se tornam mais evidentes: um certo fetichismo e uma afetação por vezes pesada ─ suas qualidades, entretanto, são sempre ainda mais reforçadas a cada revisitada. Se bobear é o filme juvenil mais genial da história do cinema ─ talvez nem tão genial, mas bem juvenil, o que não é demérito algum, pelo contrário, é de onde decorre grande parte de suas virtudes.

É preciso ainda encarar o filme de Kubrick como uma obra intelectual. Não erudito, nem difícil ou hermético; mas sobretudo um filme político. Mais que o seu personagem, Laranja Mecânica é anárquico por excelência: o Estado só está interessado no tratamento para a cura da criminalidade por pura conveniência, para poder utilizar as penitenciárias para trancafiar presos políticos; a oposição, só toma partido do protagonista (quando desamparado) como arma para combater o governo, levando à tentativa de suicídio do rapaz, uma vez que necessário.

O próprio Alex DeLarge é um demoniozinho anárquico, invadindo casas alheias e lares ricos, esbaldando-se na destruição e violação de objetos tipicamente burgueses. A derrocada da estante de livros na cena do estupro no começo é um chute no saco dos intelectuais. Uma das melhores cenas do filme é o jovem lendo a Bíblia no presídio, e em devaneios como o soldado que flagela Cristo na crucificação, degola inimigos nas batalhas e se satisfaz com as criadas da esposa. Ali o filme nos mostra que a sua redenção é impossível de ser alcançada, e o próprio personagem tem a sua via-crúcis particular logo após sair da prisão, que é quando o filme se torna bem mais interessante (por mais divertido que possam ser os seus primeiros quarenta minutos). É o circulo se fechando em torno do protagonista, pois a sua narrativa é circular, com o indivíduo marcado pelo acúmulo de experiências pessoais e transformado num boneco de pano e reduzido de algoz para vítima, mas depois voltando ao ponto de origem, igual do jeito que começou: o filme termina com Alex curado, totalmente criminoso como antes, mas agora amparado e legitimado pelo Estado, comendo na boquinha pelas mãos do Primeiro-Ministro, disposto a lhe oferecer todas as regalias. Os próprios ex-companheiros de Alex (que o traíram no começo) se converteram em policiais, o que parece nos afirmar que quase todo deliquente pode virar autoridade no final.

É uma visão de mundo bastante negativa, por trás de um tratamento todo irônico, e se é uma antevisão da ultraviolência, o filme tem mais a ver com os nossos tempos do que com um futuro distante. A própria concepção cenográfica é mais retrô do que futurista, vale dizer (o que leva a equívocos de interpretações de que o filme teria envelhecido em seu décor, quando na verdade as intenções de Kubrick era se referir às barbáries e a política do próprio século XX).

O único entre os lados formados pelos personagens em Laranja Mecânica que parece ter razão é o Capelão que acompanha DeLarge na prisão, não porque Kubrick defenda a Igreja, mas porque acredita na sinceridade das palavras do sacerdote, quando este defende o direito ao livre-arbítrio ou fala que a bondade só pode vir de dentro pra fora, e não imposta de fora pra dentro.

É um dos filmes mais óbvios de Stanley Kubrick, onde as suas idéias estão mais escancaradas, porém muitas delas passam despercebidas por causa de efeitos mais fáceis provocados por sua superfície. Deveria ser encarado pelo que é, despido do olhar em torno da aura que o envolve, ou das idolatrias ou polêmicas imbecis que costuma suscitar.

Vale lembrar de algumas das influências cinematográficas que ajudaram Kubrick a compor o seu filme. Tem o Funeral Parade of Roses(1969), claro, um filme japonês underground que não é lá essas coisas, mas bem interessante, e do qual o americano copiou algumas (poucas) cenas praticamente inteiras, inclusive no que se refere ao uso da música. Ainda sobre a trilha sonora, os primeiros filmes de Ken Russell certamente também serviram de inspiração, e tem o …If (1968), do qual tirou Malcom McDowell e parte de sua anarquia juvenil e satírica, sendo que o de Lindsay Anderson, por sua vez, se inspirava no clássico Zéro de Conduta (1933), de Jean Vigo, também radical e com direito a nu frontal, humor escatológico e avançado para a sua época, blasfêmias e obsessões com corpos. O filme de Kubrick é uma versão ainda mais estilizada e pré-punk de tudo isso.

Eu que não sou louco de desprezar um filme desses. E agora é aguardar pelo lançamento de Barry Lyndon em Blu-Ray.

Absolutamente Certo (Anselmo Duarte, 1957)

Voltando a atualizar o blog depois de algum tempo sem escrever nada por aqui. Nesse tempo todo, pude rever no Canal Brasil depois de muitos anos o Absolutamente Certo, estréia na direção de Anselmo Duarte, então um dos galãs mais famosos do país. O que agora me chamou mais a atenção foi as semelhanças do argumento com o péssimo Quem Quer Ser Milionário (2007), de Danny Boyle: em seu filme, Anselmo interpreta um sujeito pobre conhecido por ter decorado a lista telefônica inteira de São Paulo por causa do seu trabalho como funcionário numa gráfica, e devido a essa peculiaridade é chamado para um programa de perguntas e respostas na TV (nos primórdios do veículo no Brasil), uma espécie de Show do Milhão da época chamado “Absolutamente Certo”, onde poderá ganhar um milhão de cruzeiros se passar por todas as fases respondendo certo as questões que lhe são feitas. Há intrigas com a família e a namorada, e com os membros de uma pequena máfia que controla as apostas, em suma, um enredo bem próximo do filme oscarizado de Danny Boyle.

Mas que ninguém se engane: ainda que a sinopse possa soar desanimadora, um mesmo argumento pode servir tanto para um filme todo errado como para um bem digno, bastante divertido realizado cinquenta anos antes, como esse Absolutamente Certo. Anselmo aprendeu em suas produções como ator na Vera Cruz e Atlântida a fazer um filme popular, e ainda que não conte com a graça de comediantes como Oscarito, também está livre de alguns cacoetes da chanchada ou dos tons empolados da Vera Cruz. O diretor estreante é esforçado, mas humilde diante de seu material, consciente do que pode ou não concretizar, e faz uma crônica bem-humorada sobre a sua época (fazendo inclusive um comentário sobre a invasão da música norte-americana no país). Ainda que não seja um musical, os números com canto e dança estão bem coreografados e integrados à trama (inclusive aproveitando o surgimento do rock no Brasil), um recurso quase obrigatório às produções da época, mas que em Absolutamente Certo não soam deslocados ou apenas para encherem lingüiça. Um belo acerto do diretor que pouco depois faria o premiado O Pagador de Promessas.